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domingo, 12 de outubro de 2014

Mudanças

E chegou, um pouco cedo demais, mas chegou. O Inverno mesmo, nem sequer passou pelo Outono, foi directo, com muita chuva, vento forte, céu completamente tapado de nuvens. Ainda saímos de manhã e um bocadito à tarde, mas estava muito desagradável. Demos uma volta à roupa de Verão, tirámos a que é para dar, guardámos a que já não dá para vestir agora e voltamos a pôr no armário, pronta a usar, a roupa de meia estação e mesmo de Inverno.
Nada que se compare com as arrumações da minha mãe, ou mesmo das madrinhas, das madrinhas ainda era melhor, os armários eram muito altos, ou eu na altura era muito pequena. Os casacos, os vestidos e os sapatos cheiravam todos a naftalina. A mudança começava ainda em pleno Verão, era preciso verificar como estavam, pôr ao ar, arejavam durante dias, vestiam-se para verificar da necessidade de algum pequeno arranjo, ou então eram para dar e aí às vezes calhava-me a mim, porque o que as madrinhas não queriam, normalmente a minha mãe aproveitava. Claro que elas, as madrinhas faziam as devidas recomendações, faziam os novos desenhos que a minha mãe executava com mestria, e surgiam sempre modelos no top da moda, era a rapariga que vestia melhor em Cabeção, o Tonho Afonso costumava dizer que eu era a rapariga com o "rabo mais bonito" e ninguém ficava ofendido, eu simplesmente não ligava, era demasiado velho, gordo e falava demais para o meu gosto, não valia a pena dizer nada, nem os meus pais diziam nada e as madrinhas recomendavam " orelhas moucas" não se dá atenção senão ao que merece a pena e isso é uma conversa sem interesse, e morria assim o assunto do meu rabo.
Acabadas as mudanças dos armários das madrinhas, mudança que demorava bem umas semanas, porque aproveitava-se e começava-se alguma roupa para a próxima estação, às vezes a minha mãe ia ajudar a cozer, a tia Albertina também e assim era muito mais interessante, as conversas não tinham fim, não me lembro se a gente lanchava, mas com certeza que sim, a minha avó não participava da costura mas costumava ir para junto delas conversar, falava-se de tudo e de vez em quando ela fazia-me torradas com toucinho, mas ia comer para a cozinha, nunca se comia ao pé da costura porque podíamos pôr nódoas e isso era o pior que podia acontecer. A madrinha Fernanda sabia cortar e cozer muito bem e também tinha muito gosto na escolha dos modelos, a minha mãe e a tia Albertina costuravam com muita perfeição.
Quando acabava essa azáfama, passávamos para a minha casa, e quando a madrinha Toninha era mais nova também gostava de ir para a minha casa para opinar sobre as roupas, não costurava nem limpava, mas opinava e isso era muito bom. Demorávamos uma tarde, a minha avó também aparecia, mas os homens permaneciam longe, podiam espreitar, pouco mais.
Eu faço as mudanças com o meu PQ, sem ele era uma tarefa hercúlea, as caixas devem ir para o armário nas últimas prateleiras e só ele lá chega e mesmo assim tem que pôr-se em cima duma cadeira alta. A minha roupa não cheira a naftalina e por isso não precisa de apanhar ar, também não sei transformar nada, de modo que a roupa que não serve, vai para dar, arranjo sempre quem eu acho que aproveita. Não sei cozer à máquina, não sei cortar, não tenho muito gosto para escolher os modelos, normalmente vou à loja e tento encontrar um modelo bonito. Olhando para trás a minha mãe e as madrinhas tinham muito gosto e durante toda a minha meninice e juventude andei muito bem vestida, com roupa transformada a maior parte das vezes, noutras alturas as madrinhas compravam em Lisboa os tecidos que a minha mãe e a tia Albertina costuravam em lindos vestidos e não só, tinha também saias e casacos a condizer, com cascóis e cintos, saias calças, calças, vestidos compridos e outros muito curtos, enfim "andava na moda".
Agora também, já não tenho "o rabo mais bonito de Cabeção", mas ainda assim sinto-me muito bem.
A chuva e o vento já chegaram, sei que o sol ainda vai voltar e percebo que dentro de mim o mau tempo passou neste Verão que me ressuscitou, trago no coração as tardes de sol, os dias cheios das brincadeiras da minha neta, os dias cheios de beleza do Bósforo e do amor do meu PQ, estou pronta.

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