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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Conversas

- Maria, gosto tanto de ti!
- Cala-te Luís, cala-te... andaste a beber?
E havia sorrisos, dele porque estava desinibido e dizia o que lhe ia na alma, doutra forma não tinha coragem, dela porque gostava de ouvir, sorria, mas ao mesmo tempo tinha vergonha, sorria até com os olhinhos, que eu bem via por detrás dos óculos.
Era assim todos os domingos, o meu avó almoçava, dexia a rua, ia até ao café da rua do ribeiro, ficava por lá um bocadito e a meio da tarde voltava para casa, cara avermelhada, sorriso nos lábios e as palavras sagradas:
-Maria gosto tanto de ti!
Eu ao princípio ficava sem jeito, achava graça, mas pouco, não gostava de vê-lo com um grãozinho na asa, e durante muitos domingos limitava-me a ficar com o meu avô, ao fim da tarde, ao canto do lume, a ouvir na televisão a preto e branco, a conversa do Vitorino Nemésio - Se bem me lembro. Muitas das conversas eu não percebia, gostava da entoação das palavras é certo, era musical essa entoação, com um sotaque açoriano lindo, um rosto de tão feio tornava-se bonito, e poder ficar com o meu avô sossegadinho, ali os dois juntinhos, dáva-me uma certa paz e uma sensação de controle; mais tarde comecei a tomar a iniciativa de ir ter com ele ao café e antes que ele bebesse convidáva-o:
-Avô vamos, está na hora do programa!
-Já?
-Sim, falta pouco, vamos andando.
-Estás a enganar-me para me levares daqui?
-Não, é verdade, já falta pouco para o programa, vamos para casa!
E lá íamos os dois, o meu avô deixava que eu o enganasse,  e eu senti-me feliz por ter impedido mais um sorriso nos lábios e a eterna e deliciosa frase:
-Maria, gosto tanto de ti!
Estes domingos sucederam-se durante anos, acho que foi por isso que um dos meus escritores preferidos sempre foi o Vitorino Nemésio e tenho saudades das conversas dele - Se bem me lembro. Era uma conversa sem fim nem principio, que podia começar numa frase ouvida na rua até à Odisseia de Homero, ou a qualquer outra importante obra de arte literária ou outro qualquer tema, interessante ou não, porque na verdade o que era realmente interessante era a conversa só por conversa.
Talvez seja por isso que eu gosto de conversar só por conversar, sem tema pre definido, ou com tema, conversar faz-me bem à alma, e se a conversa for com as filhas ou o meu PQ, até que a minha neta me dê conversa, eu espero, é muito bom. Quando isso não acontece e enquanto espero pela neta, venho conversar aqui, mesmo que esta conversa seja de mim para mim.
-Maria, gosto tanto de ti!
-Cala-te Luís, cala-te, valha-me Deus, já bebeste?

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