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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A minha rua

O Dr.º Guedes que morava na minha rua, na casa em frente à minha, costumava dizer: "quanto mais conheço as pessoas mais gosto dos animais", e sempre pensei que esta frase tinha apenas que ver com a cadelinha dele, a pombinha, uma daelinha toda branquinha com o pelo comprido todo penteado muito lavadinha, que não passeava na rua só estava em casa, muito raramente passeava na rua com ele, desconfio que quando entrava na porta do quintal, limpava as patas no tapete, como dono fazia com os sapatos, gastos de tão engraxados. Na altura sempre pensei que era conversa de quem não tinha filhos e não tinha que se preocupar senão com algumas coisas: mudar de carro de 2 em 2 anos, sempre da marca Mercedes, escolher o que lhe apetecia comer, o que lhe apetecia vestir, mas os fatos eram sempre iguais, cinzentos, camisa branca, gravata e chapéu cinzento na cabeça, as perninhas viam-se quando as calças ganhavam ritmo com o andar, eu espreitava por baixo e via as perninhas muito magrinhas e muito branquinhas, olhava com estes olhos bisbilhoteiros e comentava com a minha mãe, o meu avó, a minha avó, mas não me respondiam, não me diziam nada, será que eles também pensavam o mesmo: "quanto mais conheço as pessoas mais gosto dos animais"?
Literalmente e emocionalmente cada dia que passa mais concordo com ele, até gosto de calças cinzentas e blusas brancas, mas os meus dois cães não se assemelham em nada à pombinha.
Diáriamente gosto do meu trabalho, se pudesse dizer, dizia que retiro prazer do que faço, gosto de conversar com os doentes, gosto de os ajudar a encontrar a origem dos seus problemas e a procurar com eles as soluções, mas quantos dias não sou incomodada com as palermices dos ciúmes dos meus colegas porque se calhar não são tão felizes quanto eu, nem conseguem ter um raciocínio tão rápido e tão eficaz, nem conseguem passar receitas tão depressa como eu consigo. Primeiro quando começo a trabalhar não olho a quem o faço, e, mesmo quando me parece que não vou gostar da conversa com este ou aquele doente, é mentira, gosto mesmo e consigo sentir que os doentes tão gostam, e falamos e por vezes rimos e contamos histórias, e é bom. Como gosto do que faço, consigo desenvolver uma grande quantidade de tarefas quase ao mesmo tempo, e para além disso ainda consigo dar trabalho a mais meia dúzia, resumindo, não passo despercebida, ficando com uns que me adoram, e naturalmente outros que me odeiam; com quem me preocupo eu? com os que me odeiam e sinto vontade de ralhar e fazê-los entender que eu sempre tenho a razão toda, claro, só pode mesm,o ser assim, sou uma miúda muito amada e mimada desde pequena, que ainda hoje quer que o mundo gire à sua volta. Não vale a pena não tenho nem idade, 55 anos, nem estatuto, chefe de serviço, para me preocupar com o que pensam de mim, desde que eu consiga pensar bem.
Não sou o Dr.º Guedes, não uso calças nem chapéu cinzentos, os meus cães não se parecem com a pombinha, nem troco de carro de 2 em dois anos, mas fico-lhe grata por me ter despertado para a dificuldade que é lidar com as pessoas, vivendo e aprendendo. Que saudades da minha rua!

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